quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Esqueceram de si: nao é cinema, mas pura realidade!

Eis aí, o Estado brasileiro...Uma das invencoes mais desmemorizadas da história: nao estou falando da capacidade que sua tendência centrípeta e autoritária teve de aniquilar as instituicoes sociais. Afinal de contas, a sociedade civil continuou existindo, os grupos e as organizacoes sobreviveram a fôlego de lesma, outros nem tanto. Essa é conhecida de todos nós.

Falo da memória do próprio Estado, a identidade pública que simplesmente inexiste entre sociedade e poder. Sempre um ente abstraído da vida quotidana: quem nunca teve problemas em obter um mísero documento numa reparticao pública ou entender uma lei cuja escrita é rebuscada e muitas vezes vazia de sentido, que atire a primeira pedra. O Estado é a fábula das elites, sabemos muito bem.

O problema é que nem mesmo nossos Esopos deram conta de se fazerem entender. Copiam historinhas muito mal e, na hora de recontar, deixam o ouvinte a ver navios. O Federalismo de 1891, por exemplo, era afilhado da autonomia que possuíam as províncias do Império desde o Ato Adicional de 1834. A relativa autonomia que foi concedida às províncias àquele tempo funcionou como um efeito retardativo da fragmentacao territorial, ao mesmo tempo em que era possível controlar os movimentos separatistas sem maiores dificuldades, gracas ao apoio dos Estados. Fato é que as elites organizadas em torno do governo Republicano estavam a lidar com uma série de movimentos que se arrastavam desde fins do Império, e o discurso federalista cairia como uma luva à manutencao do poder central, pois estaria a calar a boca de idealistas que firmassem seu horizonte em modelos estabelecidos no hemisfério norte, ao mesmo tempo que permitiria controlar, nos tempos em que marechais governavam sob o comando da espada, eventuais conflitos.

Voltando um pouco, lembremos do governo de D. Joao VI no país. Sem dúvidas, é o momento mais significativo da história institucional brasileira: as elites serao desenhadas efetivamente no período em que o aparato institucional se transfere à colônia: A Mesa da Consciência e das Ordens, por exemplo: ela é a palavra final, pela qual o monarca pode julgar à sua própria consciência, aquilo que acreditar relevante aos assuntos da Coroa. Ela é a ponte efetiva entre o poder central e a sociedade. Exemplos nao faltam de processos em que a Mesa manifesta parecer mesmo para o provimento de cargos eclesiásticos. Igreja e Estado permanecem, mesmo no Brasil, na linha balancante de regimes como o Padroado anos depois.

Incomoda dizer que, nos anos de história colonial, a elite econômica é a elite cultural e política do Brasil. A coincidência nao é absoluta, pelo simples fato de que, durante anos de colonialismo, a elite econômica esteve assumindo seu papel secundário, em detrimento dos interesses do Poder central. O modo de organizacao das atividades econômicas nao pode ser tido como nascedouro do modo de organizacao política. É apenas com a chegada da família real e a instalacao de núcleos de poder diretamente ligados ao poder central que podemos falar em "elite política brasileira": mercês, gracas e favorecimentos, subordinacao e fidelidade intensificados desenham o conjunto das instituicoes e os interesses que melhor serao atendidos com o processo de independência.

Afinal, nenhuma guerra civil, propriamente dita, ocorreu durante a ruptura dos lacos com Portugal. As chamadas guerras de independência referiam-se, a bem da verdade, à manifestacao dos interesses divergentes entre grupos sociais, que apoiavam modelos de organizacao política distintos; grupos esses já alojados sob a cútis do poder central: elites latifundiárias (como o caso de Cachoeira), que víam em Pedro I e no país recém nascido a possibilidade de mudanca das políticas tarifárias (haja vista a crise em que se encontrava a atividade acucareira do país), elites latifundiárias que eram favoráveis à contitnuidade da submissao à Metrópole (gracas as políticas de controle de precos de mercadorias como a carne) e, por fim, de militares apoiadores do governo central vindo de Lisboa.

Conflito inevitável ou nao, exemplifica muito bem que o que expus parágrafos atrás: nao se pode reduzir uma única elite como sendo ela mesma a elite econômica, cultural e política do país. Em 300 anos de colonialismo, grupos sociais estiveram calados, pela inexistência de academias e escolas no território brasileiro, por exemplo. Certamente, o mecanismo de exploracao colonial e a desigualdade formaram abismos indispensáveis às formas de organizacao do poder. E, mais importante, deram às geracoes seguintes espaco para a mitificacao dos discursos (jurídicos, políticos, culturais), cada vez mais fortalecidos enquanto ferramentas de controle social e tributários de uma amnésia institucional, fetiches e cópias de modelos desfuncionais, capazes (quando muito!) de atender aos objetivos pessoais dos ocupantes do poder.



sexta-feira, 17 de julho de 2009

Juiz Sem Noção, #1

Iniciando a série Juiz Sem Noção, temos logo um exemplo magnífico. É importante perceber que não é fácil afastar a racionalidade e bom senso a esse ponto, por isso recomendo que esses juízes sejam sempre lembrados por essas façanhas.

Começo com a história do Juiz substituto José Wagner Pedrosa, da comarca de Mâncio Lima, uma cidadezinha no interior do Acre. Durante vinte dias, ele fez vigorar uma portaria que determinava, em um único parágrafo, a proibição de trajes inadequados para se frequentar o fórum do município. No index do juiz, estavam bermudas, shorts, calções, camisetas regatas, minissaias, miniblusas e trajes semelhantes.

Claro, a portaria polêmica fez com que a opinião pública, alguns colegas e o Ministério Público Estadual levassem o juiz a revogar seu parágrafo em menos de um mês. Em entrevista ao Blog da Amazônia, o juiz declarou que "As pessoas passaram a comparecer bem vestidas ao fórum depois da portaria. Aliás, eu até pedi para que não fosse feita a divulgação da revogação para que elas continuassem vindo bem vestidas."

Atos secretos estão bem na moda esses dias, hein?
Selecionei o que considero os melhores trechos da entrevista:

Blog da Amazônia: O senhor sempre comparece ao fórum de terno e gravata?
Sr. José Wagner Pedrosa: Sim, sempre. Faço questão. Mas a portaria não exigia que ninguém viesse de terno e gravata, de calça nova. A calça podia estar rasgada. Se a única calça que a pessoa possuía estava rasgada, ela podia vir. O que eu queria é que elas, quando entrassem aqui no fórum, mostrassem respeito. Uma mulher, por exemplo, que não tem uma saia longa deve repensar os seus conceitos. Elas compareciam com certas roupas que poderiam dar ensejo ao cometimento de um crime aqui dentro das dependências do fórum.

Blog da Amazônia: Se a portaria era tão positiva porque o senhor revogou?
Sr. José Wagner Pedrosa: Isso causou muita repercussão entre as pessoas instruídas, que têm meios de chegar à Corregedoria do Tribunal de Justiça. E isso causou uma polêmica tão grande que eu decidi não polemizar. Se a República brasileira dependia de uma portaria que buscava regulamentar o uso das roupas, salvei a República revogando a portaria.

A entrevista é toda muito pertinente a essa seção, e pode ser conferida na íntegra aqui.

Sr. José Wagner Pedrosa, mais uma figura lendária!

Batatas e Urbanização

Quando descobri, ainda na escola, que os europeus não conheciam o tomate, a cana-de-açúcar, o milho, o café, o feijão ou o cacau antes das Grandes Navegações, fiquei matutando como seriam monótonas as mesas e os banquetes naqueles tempos. Tá certo, por causa da série ilustrada "Povos do Passado", já tinha na minha mente a imagem de festins medievais com muita carne ou de orgias greco-romanas com vinhos, peixes, queijos, pães e mel em fartas porções.

Todavia, era difícil naquela idade conceber como era possível uma civilização que não comia chocolate, nem pizza, nem pipoca, e nem adoçava a sua vida com açúcar.

Mais chocante ainda: eles não conheciam a batata! Inacreditável. Quase tudo de bom na culinária leva batata.

Eis que uma pesquisa recente, da lavra de Nathan Nunn e Nancy Qian, tenta mostrar que, se não fosse pelas batatas, a Europa não teria passado pelo rápido processo de urbanização e crescimento demográfico verificado nos séculos XVIII e XIX.

Os dois cientistas desafiam a tese que aprendemos na escola, de que teria sido a revolução na medicina e no saneamento a responsável pelo veloz aumento do crescimento vegetativo do continente. As regiões mais apropriadas para o plantio do vegetal, argumentam, seriam aquelas que teriam experimentado o maior salto populacional. A mesma quantidade de terra cultivada antes agora podia gerar mais calorias - já que essas são abundantes nas deliciosas batatas, como todo mundo em fase de emagrecimento deve saber.



"Os comedores de Batatas" - Vincent Van Gogh, 1885 - Museu Van Gogh, Amsterdã

Então, o salto populacional mundial de 300 milhões para 1,6 bilhões de almas, entre o ano 1000 e o ano 1900, aliado ao surgimento das metrópoles e ao rápido desenvolvimento econômico e industial, seriam culpa das batatas fritas, purês, sopas de batatas e afins.

E assim, os alemães viraram experts no uso das batatas, assim com os italianos no uso dos tomates, para a felicidade geral dos estômagos mundo afora.

Portanto, da próxima vez que você for se empanturrar com uma salada de batatas ou com um nhoque, em vez de se arrepender, lembre-se disso...

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Fiumana

Giuseppe Pellizza (1868-1907), nascido na cidade piemontesa de Volpedo, foi um dos principais expoentes do divisionismo, técnica que floresceu em fins do século XIX, que consiste na composição de grandes imagens a partir de pequenas pinceladas. Cabe ao olhar do espectador unir as cores, em sintonia com outras correntes do movimento impressionista.

"Fiumana" (1895), nome da tela acima, é uma palavra que em italiano designa a impetuosa corredeira formada por um rio ("fiume") em época de cheia. Nomeia também uma multidão de pessoas que marcha sem parar - em inglês, o nome dado à pintura é "Human Tide". Trata-se, evidentemente, de uma representação das lutas político-sindicais da época, uma exaltação do avanço da causa operária.

Alguns anos mais tarde, desenvolvendo a temática, Pellizza da Volpedo fará aquela que é considerada a sua obra-prima, "Il Quarto Stato".

"Fiumana" pode ser vista na Pinacoteca di Brera, em Milão.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A liberdade de expressão e as pré-compreensões

A Praça da Bastilha, em Paris, funcionou como uma prisão por várias décadas e se tornou conhecida após sua tomada, em 14 de julho de 1789. Hoje, duzentos e vinte anos depois, a luta pela liberdade ganha outros contornos, mas ainda não deixou de existir.

Aquela prisão era dividida em três compartimentos. No superior havia certa dignidade para os presos, no térreo os respeitos aos direitos básicos eram mais reduzidos e, no calabouço, mal havia espaço para os detentos levantarem o braço para poder acenar.

As sociedades mudam, as lutas mudam, mas a desigual distribuição de recursos permanece. Um grande alvo dessa desigualdade é a liberdade de expressão. Mais do que um poder exprimir-se, voltado ao presente e ao futuro, esse direito também depende de um adequado poder-conhecer, voltado ao passado.

A despeito da internet livre, observa-se ainda, na verdade, certo monopólio dos meios de comunicação unidirecionais de transmissão de informações, como o rádio e a TV, sobre os demais. Essa forma monológica de transmissão de informação precisa, a cada dia, perder espaço para os meios dialógicos e polifônicos, nos quais os conteúdos possam ser questionados com maior rapidez e por fontes diversas (e não apenas as escolhidas pelos próprios meios). Os blogs têm sido a grande ferramenta para essa alteração no modo de se fazer comunicação democrática com grandes grupos.

Infelizmente, o mesmo cerceamento que se via nos três pavimentos da Bastilha ainda é observado na atualidade, tanto naqueles meios de comunicação quanto nas condições de vida em que se encontram considerável parte dos cidadãos, em seus variados níveis de acesso à informação.

Desta vez, não por uma força externa e direta, mas interna e indireta. Seja pela monopolização de pré-compreensões promovida por meios unidirecionais de informação que não permitem refutação imediata e plural, ou pela falta de condições mínimas de dignidade para determinados grupos sociais. Estes sequer têm tempo ou condições de suprir-se de informações básicas a possibilitar um mínimo de questionamento. Quem não conhece não questiona. Apenas aceita.

Toda compreensão é dependente de uma pré-compreensão anterior a ela que lhe dá sentido e é sua condição de possibilidade de existência. A todo momento, questionamos as informações que chegam até nós com base no que previamente sabemos. As respostas a essas perguntas se tornam novas pré-compreensões, que serão base para os novos questionamentos. Se o conteúdo delas for monopolizado ou restringido, toda a compreensão também o será.

Como todos os conceitos anteriores são base para os novos, a apreensão de uma informação inadequada (que denomino pré-conceito ilegítimo) pode levar a um ciclo vicioso. Um exemplo extremo desse fenômeno pôde ser observado no nazismo, quando aceitou-se a errônea idéia de que existe um grupo de pessoas superior aos outros.

Buscando, então, um meio plural e democrático de construção de pré-compreensões, este blog se propõe a tratar, com base na liberdade de expressão positiva, de temas relacionados à Política, Filosofia, Direito e outras variedades acadêmicas, no intuito de transformar os ciclos viciosos em virtuosos.

Eis que, como dito, a liberdade de expressão não se limita a poder-expressar-se, mas, também, a um poder pré-conhecer adequadamente que possibilite um devido questionamento das informações a que se tem acesso com rapidez e pluralidade. Participem, questionem, lutem, compreendam, respeitem, dialoguem e contribuam para a eliminação de pré-conceitos ilegítimos existentes em nossa sociedade.